Japão
2018-09-26
A história oriental segundo o historiador e filósofo André da Silva Bueno, é uma forma de literatura, “baseada em fatos reais”. Fruto da conexão entre o real e o imaginário, a construção da história se dá através da interpretação de informações, documentos e provas de terminada época. A história, “mais do que afirmativa, seria propositiva” (Bueno). Encontramos não apenas as impressões de historiadores, mas uma tradição popular, imagens construídas a partir das impressões que o povo teve de seu tempo e de seus heróis. A passagem histórica a seguir narra a versão oficial da batalha de okehazama, muitos dos fatos tidos como oficiais possuem uma origem popular, e diferem de algumas fontes históricas.
Owari no Kuni, Junho de 1560
A pequena província de Owari, atual Aichi, era cruzada pelo poderoso exercito do clã Imagawa, detentores das províncias vizinhas de Totomi, Suruga e Mikawa. O Japão encontrava-se em guerra civil, o poder antes centralizado pelo shogunato Ashikaga (1336–1573), agora se encontrava enfraquecido politicamente. Realizar uma marcha até a capital Kyoto e derrubar o Shogun era ambição não incomum entre os poderosos Daymio da época, como Takeda Shingen de Kai (Yamanashi) ou Uesugi kenshin de Echigo (Niigata).
Porém seria Imagawa Yoshimoto (1519 – 1560) o primeiro a colocar estes planos em prática, iniciando uma marcha com um exercito estimado entre 25 mil homens (40 mil declarados publicamente) em direção a capital.
A notícia de que a província de Owari havia sido invadida trouxera ao castelo de kyosu os principais cabeças do clã Oda. Os mais velhos falavam em fazer um acordo com o inimigo, outros em entregar-se sem lutar, em geral todos procuravam prevenir a aniquilação total do clã. O homem por trás deste conselho não passava dos 26 anos de idade, era tido como um idiota, uma pessoa sem os modos devidos a sua posição social. Oda Nobunaga (1534-1582), líder do clã Oda, havia estabilizado a situação de seus domínios a poucos anos, porém sua fama de um jovem tolo ainda era conhecida pelo Japão.
Foi acordado subitamente durante madrugada, por um mensageiro trazendo a notícia de que o inimigo, tendo tomado duas fortalezas , agora descansava suas tropas próximo a Dengakuhazama.
Pede então sua armadura. Este momento seria imortalizado. Nobunaga realiza um pequeno trecho da peça de teatro Noh, Atsumori, conhecida como kowakamai. A obra narra o encontro de Kumagai Naozane com a alma do jovem samurai Taira no Atsumori (1169–1184) a quem matara durante a batalha de Ichi-no-Tani (1184), e o seu arrependimento e conciliação. Com leque em punho, segue os paços acompanhados ao som do ko tsuzumi (um pequeno tambor utilizado para obter o compasso no teatro Noh):
人間五十年
下天の内をくらぶれば
夢まぼろしの如くなり
ひとたび生を得て
滅せぬ者のあるべきか
50 anos da vida de um homem sob o céu
Não são nada comparados com a idade deste mundo
A vida é como a ilusão de um sonho
Existe algo que dure para sempre?
No Teatro Noh, tanto o ator principal (shite), os músicos ou o artista que cria a máscara precisam estar em sintonia com a peça e as personagens a serem interpretadas. Os versos preferidos de Nobunaga tinham um significado profundo para os valores do budismo e shintoísmo. Aquelas palavras ditas com tanto vigor, não eram apenas uma interpretação, mas exprimiam a energia de um homem que estava prestes a entregar sua vida.
E assim sai do castelo com menos de 200 homens. Ao longo do caminho suas fileiras vão aumentando, a vanguarda é composta de pouco mais de 200 cavaleiros liderados por Mori Yoshinari e Shibata Katsuie. Ao chegar a um pequeno templo, o Zenshōji, reúne o resto das tropas. Nobunaga conseguira cerca de 2500 samurais dispostos a entregar suas vidas. Na localidade de Atsuta, pede aos aldeões e comerciantes locais que posicionem todas as bandeiras festivas possíveis e façam fumaça, simulando um acampamento militar, para entregar uma falsa posição ao inimigo.
Então, é dada a ordem para que cada soldado abandone qualquer equipamento desnecessário, tal como bandeiras e estandartes, bagagens etc… Tambores e formações de batalha já não existem mais, a prioridade da tropa é alcançar o inimigo o mais rápido possível.
Durante a tarde a pequena força do clã Oda passa pelas linhas inimigas sem ser percebida, ajudados pela pelas trovoadas e relâmpagos. Imagawa Yoshimoto e seu estado maior são surpreendidos em seu Honjin 本陣 (quartel general), um pequeno acampamento guarnecido por poucos soldados. A confusão se instala, a batalha termina em poucas horas, com a cabeça de Yoshimoto nas mãos de Mori Shinsuke.
Novas descobertas arquelógicas e estudos recentes tem colocado esta versão a prova, além disto, a principal fonte biográfica de Nobunaga, o Shinchou koukiki (1610) escrito por Oota Gyuu-ichi difere em muito da história oficial . Nesta obra, a batalha de Okehazama acontece 10 anos antes, os números das tropas diferem, e um ataque surpresa nunca foi citado. Esta seria também a única aparição significativa de Mori Shinsuke. A cena da dança Atsumori, é um ótimo exemplo, com todo o seu misticismo, existem dúvidas quanto sua precisão histórica, apesar disto, tornou-se uma importante referencia na cultura nipônica, estando presente em várias obras como o filme de Akira Kurosawa, Kagemusha (1980), ou na novela de Yoshikawa Eiji, Taiko. Independente de qual foi a verdadeira Okehazama, não se pode negar sua versão popular como uma história autêntica e sua contribuição para a cultura nipônica.
Nobunaga seria o primeiro dos Daimyo a chegar a Kyoto, em 1568 consolidou a sua supremacia e iniciou a reunificação política. A contribuição de Nobunaga para o Japão vai além da reunificação: reformou as estradas e seu sistema de comércio (rakuza – rakuichi), pôs fim ao monopólio de guildas e templos, nocivos ao país. Entusiasta da cultura ocidental, também incentivou o comércio exterior e a pesquisa de conhecimentos trazidos pelos portugueses. Deixou sua marca na história como um homem de temperamento imprevisível e brutal, idéia construída não só por documentos oficiais, mas pelo folclore do povo, que o imortalizaria como herói e demônio através dos seguintes versos:
“Se o pássaro não cantar
Mate-o (Nobunaga)
Faça-o querer cantar (Hideyoshi)
Espere-o cantar (Ieyasu)”
Referências bibliográficas
Gilbert Durand. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins
Fontes,1997, p. 390.
Oota, Gyuu-ichi, Shinchou kouki. 新人物往来社; 新訂版, 2006/04.
Yoshikawa, Eiji. Taiko. Kodansha USA, January 16, 2001.
Takatsu, Koichi (Noh Mask Master) ,The Path of Learning Noh Mask Making
http://www.the-noh.com, Izu, Japan, June 30, 2011.
SUZUKI, Eico. Nô-teatro clássico japonês. São Paulo.
HALL, John Whitney, Ed.; Sengoku Jidai. Japan before Tokugawa. Princeton: Princeton University Press, 1981.
Fernando Henrique N. E. de Souza é Designer Gráfico(PUCPR) , pesquisador de História cultural japonesa. Foi responsável pela pesquisa e produção da exposição “Karate para não karateka” (2010), evento de abertura do 16° Campeonato Mundial de Karatê.