Vietnam

2020-07-31

Fui mulher por um minuto. E senti na pele.

Hue

Quando estava decidido que me mudaria do Vietnam, tirei férias e fui aproveitar a minha cidade preferida, Hue, a antiga capital da dinastia Nguyen. Hue é uma cidade com uma energia  triste, mas uma com uma atmosfera muito bela e poética. E’ como se as paredes dos edifícios centenários pulsassem a dor reprimida dos últimos 200 anos da história,  dos últimos mandarins, dos amores proibidos, das mães dos soldados caídos. E’ uma cidade com uma história sofrida, que viu um império em seu auge cair na mãos dos franceses, viu insurreições e a Guerra do Vietnam. E também a cidade natal de Thích Quảng Đức, o monge budista que ateou fogo a si mesmo como protesto.

Mas Hue também é a terra natal da poesia e das mais finas artes, carregadas pela sutileza de belas mulheres que só poderiam ser comparadas as gueishas de Kyoto.

Já estava a alguns dias, e envolto em toda aquela atmosfera, decidi fazer um passeio de moto, procurando algum local belo para tirar umas notas do meu erhu.

Por fim, acabei parando num “coreto”, conhecido como Nghênh lương đình, construido em 1853, como local de descanso do monarca, antes de partir para viagem de navio pelo Rio do Perfume.

Devia ser umas 2 da tarde, estacionei a motocicleta ao lado, e me dirigi a construção. Um pequeno navio a vela em formato de dragão estava ancorado no cais e a companhia de turismo responsável por opera-lo fazia seus preparativos para os passeios noturnos.

Sentei me discretamente de baixo do Nghênh lương đình, longe das pessoas, e retirei o erhu de sua capa.  Logo que comecei a tocar, um rapaz se apresentou. Devia estar na casa dos 20 e tantos anos, era forte, mas possuía gestos afeminados. No vietnam me deparei com muitos homens assim, e eis que naquelas bandas um homem não precisa afirmar sua masculinidade constantemente, como o fazem no Brasil. Isso geralmente não diz muito sobre a sua sexualidade. Aqui na Ásia, em geral, não existe o costume de se fazer piadinhas de “você é gay” assim como o cara não precisa ficar falando sobre o poder do seu falo o tempo todo para ser respeitado.

Nao dei-lhe muita atenção, limitando me a responder suas perguntas.

“De onde você é? Do Brasil? Que legal! Você joga futebol? Qual o seu trabalho? Vamos sair hoje à noite? Você é muito bonito.” Já ouvi muito este adjetivo de senhoras, jovens e homens por lá, por ser estrangeiro e diferente, portanto não me impressionei.

Indagou-me onde estava hospedado, e respondi que havia esquecido o nome do hotel.

Estava quieto no meu canto, não queria conversar, queria apenas o momento com minha música, absorto naquela aura nostálgica.

Quando se vive no Brasil, temos aquele sentido aranha, estamos sempre jogando um sonar no ambiente, sempre conscientes dos arredores e atentos às atitudes das pessoas. Mas eu estava fora a muito tempo, e apesar de geralmente andar na rua ligado, naquele momento estava sendo negligente, me desliguei. Já havia achado a constante pergunta de onde eu estava hospedado um tanto suspeita. Continuei a tocar e ele foi cuidar de seus afazeres. Quando terminei, guardei o erhu novamente em sua capa, me levantei, me despedindo educadamente, colocava o instrumento nas costas enquanto segurava a chave da moto. O rapaz avançou em mim, tentou beijar minha mão, e segurando meu pulso direito, tentou me levar para um dos pilares do coreto (onde havia pouca visibilidade), com óbvias intenções sexuais. Repetia que eu era bonito. Resisti e consegui me soltar, acho que disse alguma coisa como “não, eu não quero”, tendo que insistir. Sai de lá sem dar as costas e cheguei a minha moto em choque, tremendo, e finalmente entendi o que havia acontecido. “Puta merda, eu me distrai completamente, se esse cara me ataca pra valer, com uma porrada, eu não teria chance, que vacilo.”

Eu, que ja havia botado bandido pra correr, deixei minha guarda aberta, não tomei as precauções que geralmente tomo, como andar com as mãos desocupadas, e estar sempre atento às atitudes alheias, pronto para reagir.

Pensativo no hotel, fui tirando minhas conclusões e naquela noite eu entendi, pela primeira vez como uma mulher se sente.

No’s, homens, hetorosexuais, ocidentais, possuimos esta cultura daquele primeiro beijo para “derreter” uma mulher. Talvez um dos motivos seja aquela coisa de que fomos educados a não mostrar fraqueza, “no fundo ela quer, mas você precisa tomar a atitude”. E’ claro que geralmente flui um jogo de sinais não falados entre os dois, existe o consentimento que permite tal movimento. Afinal, não somos como os asiáticos, que declaram suas intenções com palavras. Mas e quando não existe jogo, e o fazemos de maneira agressiva (até mesmo sem saber)?

Como fica a mulher, que nada de mais queria?

Não estou aqui denunciando a maneira como beijamos as mulheres. Não.

Proponho um exercício empata: apenas nos colocarmos mais no calçado das mulheres, tentando viver um pouco dessa personagem feminina em diversas situações pacatas que vivemos, mas que podem ser completamente diferentes para elas.

Sabe aquela volta pra casa de ônibus monótona?

-Para a sua irmã adolescente, tem um cara de 40 anos a secando, e ela está começando a ficar com medo.

Aquela ida a loja de sapatos?

-O dono casado fica passando indiretas na sua prima, quando a mãe não esta por perto.

Você já viu aquela garota que passa do seu lado e te olha nos olhos com aquela paquera silenciosa?

-Muitas vezes para elas não é tão sutil assim. Algum idiota já se achou no direito de tentar passar a mão na bunda dela.

E a sua ida ao medico?

Um ginecologista já tentou agarrar a sua amiga uma vez, quando estavam sozinhos no consultório.

Pergunte pra sua irmã, para sua melhor amiga ou pra sua prima nerd que você não acha nada atraente e nunca teve namorado. Mesmo ela tem alguma estoria para te contar.

São essas coisas, que ninguém comenta, que acontecem de surpresa, e as deixam de coracão disparado, ou simplesmente ofendidas.

Ainda não entendeu?

Lembra quando você foi comprar pão com quinze anos de idade, e um cara mais velho se aproveitou da sua idade e tentou de roubar? Ou aquele cara legal que na verdade só queria te passar a perna? Tente lembrar-se das vezes que você como homem, teve sua segurança ameaçada ou sua honra desrespeitada e você não pode fazer muito na hora, porque estava sozinho, era mais fraco, ou porque o agressor possui algum status ou poder que não lhe permite sofrer denúncias.

Quando me dei conta disso, passei a conversar com familiares e amigas sobre o assunto e ouvi estorias assustadoras, e ultrajantes. Cara, como vc ficaria se uma velha gorda passasse a mão na sua bunda, te chamasse de gostoso, e depois de vc mandar ela a merda, ela cuspisse na tua cara?